Comprei o pequeno livro "Cinco pães e dois peixes - Do sofrimento do cárcere, um alegre testemunho de fé" escrito por Francisco Xavier de Nguyen Van Thuan (Paulinas Editora, 2009) por acaso, mas lembrando-me do testemunho que ouvi de alguns padres húngaros em Esztergom em 19 de Setembro de 2007, no decorrer do ICNE de Budapeste:
O título foi muito bem escolhido pelo cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, bispo de Nhatrang (Centro do Vietname) desde 1967, nomeado arcebispo-coadjutor de Saigão (hoje Ho Chi Minh Ville) e preso, poucos meses depois, em 15 de Agosto de 1975, quando os comunistas chegarem à cidade. O livro resulta dos 13 anos de cativeiro, 9 dos quais em isolamento, porque passou o cardeal Van Thuan, que viria a falecer em Roma em 16 de Setembro de de 2002 (passados 5 anos foi anunciado pelo Vaticano o início do processo de beatificação).
"Liberto, após treze anos de cativeiro, quero compartilhar convosco as minhas experiências: como encontrei Jesus em cada momento da minha experiência quotidiana, no discernimento entre Deus e as suas obras, na oração, na Eucaristia, nos meus irmãos e irmãs, na Virgem Maria, oferecendo-vos deste modo, também eu, e à maneira de Jesus, cinco pães e dois peixes."
Aliás, bastaria percorrer o índice para termos uma ideia ideia do seu "percurso":
Viver o momento presente (primeiro pão);
Discernir entre Deus e as obras de Deus (segundo pão);
Um ponto firme, a oração (terceiro pão);
A minha única força, a Eucaristia (quarto pão);
Amar até à unidade, o testamento de Jesus (quinto pão);
Maria Imaculada, meu primeiro amor (primeiro peixe);
Escolhi Jesus (segundo peixe).
Do quarto pão:
"Nunca poderei exprimir a minha grande alegria: todos os dias, com três gotas de vinho e uma gota de água na palma da mão, celebro a minha Missa.
De qualquer maneira, dependia da situação. No navio que nos levava para o Norte, celebrei durante a noite e, avisados, os presos estavam à minha volta. Às vezes, tinha de celebrar quando todos iam tomar banho, depois da ginástica. No campo de reeducação, estávamos divididos em grupos de cinquenta pessoas: dormíamos em cama comum, cada um com direito a 50 cm. Demos um jeito de tal modo que havia cinco católicos comigo. Às 21h30, era preciso apagar a luz e todos deviam dormir. Inclino-me sobre a cama para celebrar a Missa, de cor, e distribuo a comunhão, passando a mão debaixo do mosquiteiro. Fabricávamos saquinhos com papel dos maços de cigarros, para conservar o Santíssimo Sacramento. Jesus eucarístico estava sempre comigi no bolso da camisa."
Cada pão e peixe, que nem são muito compridos, redigidos no verso de velhos calendários, termina com uma oração, que no quarto pão se intitula "Presente e Passado":
Jesus amantíssimo, nesta noite, no fundo da minha cela sem luz, sem janela, quentíssima, penso com intensa nostalgia na minha vida pastoral.
Oito anos de bispo, nesta residência, apenas a dois quilómetros da minha cela de prisão, na mesma estrada, na mesma praia... Sinto as ondas do Pacífico, os sinos da catedral.
— Já celebrei com patena e cálices dourados,
agora, com teu sangue na palma da minha mão.
— Já percorri o mundo para conferências e reuniões,
agora estou recluso numa cela estreita, sem janela.
— Já fui visitar-te no tabernáculo,
agora levo-te comigo, dia e noite, num bolso.
— Já celebrei a Missa diante de milhares de fiéis,
agora na escuridão da noite, passando a comunhão debaixo do mosquiteiro.
— Já preguei os exercícios espirituais aos padres, aos religiosos, aos leigos...
agora uma padre, também ele prisioneiro, me prega os Exercícios de Santo Inácio, através da greta de madeira.
— Já dei a bênção solene com o santíssimo, na catedral,
agora faço a adoração eucarística todas as noites às 21 horas, no silêncio, cantando baixinho o Tantum Ergo, a Salve Raínha, e concluindo com esta breve oração:
«Senhor, estou contente em tudo aceitar das tuas mãos, todas as tristezas, os sofrimentos, as angústias, até à minha morte. Amén.»
Sou feliz aqui nesta cela, sobre a esteira de palha mofada crescem fungos brancos, porque Tu estás comigo, porque Tu queres que eu viva aqui contigo.
Falei muito na minha vida, agora não falo mais. É a tua vez, Jesus, de falar-me. Escuto-te: que coisa me sussurraste? É um sonho? Tu não me falas do passado, do presente, não me falas do meu sofrimento, angústias... Tu falas-me dos Teus projectos, da minha missão.
Então eu canto a tua misericórdia, na obscuridade, na minha fragilidade, no meu aniquilamento.
Aceito a minha cruz e cravo-a, com as minhas duas mãos, no meu coração.
Se me permitisses escolher, não mudaria porque Tu estás comigo! Não tenho mais medo, entendi, sigo-te na tua paixão e em tua ressurreição."
(No isolamento, prisão de Phú Khánh (Vietname central), 7 de Outubro de 1976, Festa do Santo Rosário.)